JANE BATISTA, Aldonso Palácio, 2023
DIZER O SILÊNCIO, Cecília Calaça, 2023
TOCAR O SUBTERRÂNEO, Rômulo Silva, 2023
UMA OUTRA DE SI MESMA, Anna Ortega, 2024
UM OCEANO DENTRO DE MIM, Manoela Elias, 2025
JANE BATISTA
Aldonso Palacio, 2023
Jane Batista nasceu em 1975 em Piripiri, Piauí. Reside em Fortaleza, Ceará, desde 1991. Dona de uma pulsão criativa e sensibilidade acima do comum, no ano de 2020 ela embarcou em uma jornada dedicada à fotografia, utilizando exclusivamente seu telefone celular como ferramenta, tanto para capturar imagens como para editar. Através de experimentações com autorretratos, de forma visceral e autodidata, Jane abriu as portas para uma nova forma de expressão, encontrando também um refúgio.
O olhar de Jane para si mesma é carregado de fantasia, e revela seus sonhos, desejos, medos e também sua realidade. A artista utiliza seu próprio corpo e reveste-se de objetos do seu cotidiano em forma de adereços, camadas, que muitas vezes acrescentam um verniz simbólico à sua obra. Assim ela monta uma semântica que explora noções de raça, história e representação. Quando as imagens são exibidas juntas, os espectadores são cercados por uma teia de olhares, uma miríade de possibilidades de si mesma, que emergem repetidamente como uma fonte de coragem. Para a artista, essa forma de expressão é uma maneira de resistir ao silenciamento e superar os julgamentos que recaem sobre as vozes e os corpos femininos, negros e marginalizados.
O início da história da fotografia de retrato no Brasil no século XIX encontra-se estreitamente ligado à violência colonial e ao racismo, onde fotos de negros escravizados em "poses elegantes" alimentavam a demanda na Europa por imagens do povo exótico de terras longínquas, como o Brasil. Ao virar a câmera para si mesma, Jane Batista se propõe a criar um registro visual e contra-arquivo que reconheça liberdade, dignidade e reciprocidade. Ela desafia a violência sistêmica e as representações preconceituosas dos negros, abrindo espaço para múltiplas transformações. Ao enfatizar sua coragem e dignidade diante da intolerância e discriminação, Jane Batista se torna uma voz inspiradora de resistência.
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Aldonso Palácio reside e trabalha em Berlim, onde atua como curador de arte entre o Brasil e a Alemanha. É formado em comunicação social pela Universidade Federal do Ceará e especialista em mercado internacional de arte pelo Institut d'Études Supérieures des Arts - IESA Paris.
DIZER O SILÊNCIO
Cecília Calaça, 2023
A exposição “Dizer o silêncio”, da artista e fotógrafa performática Jane Batista, apresenta um conjunto de fotografias elaboradas com um vigor poético e estético que [re]define em múltiplas possibilidades suas vivências e percepções inatas para expressar o inaudível e libertar-se do casulo.
Ascendência e família são pontos que influenciam as obras dessa artista de origem afro-indígena que cuida de dois filhos, uma filha e duas netas. Em sua casa-ateliê, nosso encontro foi marcante em razão de uma afirmação que reverbera nas obras e atravessa quem as vê, “Nós mulheres somos silenciadas, mas as mulheres negras são mais silenciadas”. Tal declaração deixou evidente seu posicionamento sobre o quanto as questões de gênero, raça e classe de maneira interseccional afetam alguns aspectos do cotidiano, porém tais fatores também são capazes de impulsionar ou de emergir em sua produção artística.
Em 2008, no livro “Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano”, a escritora, psicóloga, curadora e artista visual portuguesa Grada Kilomba fala sobre a “máscara do silenciamento” como um artefato de tortura e de subjugação racial, instrumento habitual no Brasil Colônia. Nas obras de Jane Batista, a “máscara” representa um escudo simbólico, fazendo com que aquilo que antes era martírio e horrível ceda lugar à beleza. Como escreveu Charles Baudelaire, “a dor ritmada e cadenciada completa o espírito com uma alegria calma”, e Jane Batista registra possibilidades criativas que favorecem novas experiências para o fazer artístico. Propõe dizer-redizer-reiterar rompendo o silêncio com aparências harmoniosas de formas, volumes, sobreposições, sementes, transparências e cores.
Para compor seu trabalho, a artista que é moradora do Serviluz, uma comunidade de pescadores, seleciona artefatos do seu cotidiano ou os coleta nos arredores. Trabalho minucioso de retirar do espaço doméstico materiais orgânicos ou não como cordas, galhos, folhagens, raízes, carvão, argila, cascas de ovos, pó de café, arroz, gergelim, linhaça, azeite, óleo, mel, gengibre, saco plástico, tecido e tule de diferentes cores. Em suas mãos, a variedade de materiais transmuta-se em “máscara” que pode ocultar seu rosto e revelar outras aparências, dentro de uma elaboração poética que rompe o silêncio.
As obras que estão em exposição são algumas das experiências da realidade vivida. Resultado de um processo criativo, realizado na casa-ateliê, também estúdio fotográfico, em que a artista posiciona o celular e faz uma pose para o autorretrato, à espera do flash. Cada fotografia é carregada de técnica e de potência.
Ao alinhavar cada etapa do seu ofício e expor o resultado final, Jane Batista, respeita e segue a intuição ancestral que a conduz, apresentando seu universo particular. Assim, permite que saibamos mais sobre seu esconderijo, um território singular, desvelando planos e sonhos de uma vida abundante. Em outras palavras, seu lugar no mundo é sua voz quando se quis silêncio.
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Maria Cecília Felix Calaça é curadora de arte, artista visual, pesquisadora da arte africana tradicional e afro-brasileira, doutora em educação pela Universidade Federal do Ceará e mestre em artes visuais pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Suas obras já foram expostas na Pinacoteca do Estado do Ceará, Museu de Arte Contemporânea (MAC-CE) e no 70.º Salão de Abril (CE).
TOCAR O SUBTERRÂNEO
Rômulo Silva, 2023
Por todos os quartos que passo fica um pouco de mim. Na busca pela liberdade da fala, do corpo, aqui me encontro no quarto dos horrores, das fantasias, da fotografia que me permite sentir livre. A minha melhor técnica é a curiosidade.
(Jane Batista, 2023).
Habitar a junção dos corpos e assim tocar o subterrâneo. A poeta e fotógrafa performática Jane Batista, ao se transmutar nos quartos dos horrores por meio da composição, da abertura e da Relação com outras vidas, fotografa as topografias do imaginário e apresenta-nos na forma de fotopoéticas. A cada nova aparição perecível perpetua-se a metamorfose.
Como imagear as fantasias, os sonhos e os desejos? Que forma tem a liberdade?
A exposição intitulada “Dizer o silêncio” conta com dezenas de experimentações em autorretratos iniciadas em 2020. As fotografias-de-si foram feitas em quatro diferentes quartos situados na Comunidade da Estiva (localizada no Grande Mucuripe, Fortaleza - CE, Brasil), lugar que mora há anos.
Na esquina do mundo, essas comunidades marítimas são formadas por gerações e gerações de pescadores artesanais, em sua grande maioria com ascendência negra e indígena. Comunidades à beira-mar, as lutas infinitas contra as especulações imobiliárias ocasionadas pela lógica das Políticas do Despejo, somadas as privações de direitos básicos. Mas também é o Lugar do canto, do grito, da poesia imageada, transbordantes em dança, ocupação e invenção cotidiana de infinitas práticas po_éticas de coexistências. Gente-de-lá são celeiros vivos de importantes artistas e intelectuais da Cidade, assim como um dos lugares com as praias mais bonitas do Ceará. Uma dessas artistas e intelectuais é a piauiense Jane Batista que reside em Fortaleza desde 1991.
Em sua obra o tudo e o Todo coexistem. Sem margens para a separabilidade, as ficções de dominação “Centro” e “Periferia” são abolidas ainda que provisoriamente. Logo, não trata-se de um elogio ao neutro ou ao relativo do “somos todos iguais”, pelo contrário, refere-se ao gesto de desmontar as lógicas que produzem esses lugares, que fixam e emolduram os quadros (frames), separando-os e confinando-os nas galerias branquíssimas de arte.
Apenas com um celular comum e o uso de um aplicativo simples de edição de imagem, a fotógrafa dá forma aos seus desejos, sonhos e anseios por meio de outro tipo de relação que estabelece com as vidas mais-que-humanas: raízes, galhos, sementes, sacolas plásticas, cascas de ovos, café, mel, carvão, cordas, urucum.
Ao virar a câmera para si e permutar com tudo aquilo que possibilita tornar-se, confronta o olhar fotográfico externo inexistente. Sozinha, às vezes com o auxílio de seu filho Valério-Anjo, Jane aproveita o momento oportuno, único e propício de composição e liberdade. Ao inverter a relação com a tecnologia como algo “externo”, seu corpo é um emaranhamento de tecnologias, sistemas e linguagens.
A liberdade acontece na escuridão, no negrume de sua pele-grãos, espinhos-da-carne, memórias-raízes, tato-no-encontro. Jane nos convida a tocar a luz-negra da existência, pois sabemos: a escuridão e a opacidade não podem ser compreendidas pela luz-branca, pelo controle branquíssimo dos muros, dos Dias Branco[1] – essa força Iluminista que transita entre o desejo de explorar e a tentação de eliminar. Para citar uma outra querida artista e amiga Castiel Vitorino Brasileiro, “o negrume, o preto, o escuro ou uma noite sem lua, são os principais pesadelos dos Seres modernos”.
Sim, são inumeráveis os quartos dos horrores que assombram e frustram as lentes teleobjetivas, as angulares, as olho-de-peixe, as olho-por-olho-dente-por-dente. Pois, conforme escritura de Jane Batista compartilhada comigo, “sempre haverá um povo que estará unido mesmo distante um do outro sem saber de suas existências lutando por uma mesma causa, a liberdade. Liberdade de diversas formas de vida”. E ao ler e reler muitas e muitas vezes, sorrio.
As fotopoéticas de Jane Batista não são um Absoluto sobre si-mesmas, mas sim uma abertura de mundo, lugar onde tudo coexiste, uma escuridão cósmica de liberdades que ao fim e ao cabo anuncia-nos em coro dissonante o que o poeta e pensador Édouard Glissant certa vez afirmou: “a utopia é essa força que é o oposto do poder”.
Obrigado Jane Batista por cada criação, pois como você poetizou, "uma nova libélula renasce de dentro de mim".
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[1] Não somente referência às grandes empresas e suas respectivas famílias milionárias que ocupam grande parte do entorno à beira-mar, a saber: Moinho Dias Branco, SP Indústria e Distribuidora de Petróleo, e o Depósito Nacional Gás Butano. Mas principalmente ao fato dessas forças materiais do neoliberalismo econômico sustentarem-se sob um dos pilares que a filósofa Denise Ferreira da Silva chama de “determinabilidade”, ou seja, o poder de decidir sobre as outras vidas humanas e além-de-humanas.
Rômulo Silva [1987] é poeta, pesquisador e professor. Doutor em Sociologia (UECE), coordena o Co-Laboratório de Estudos Críticos Anticoloniais ECoS~Mundo; integrante do Laboratório de Arte Contemporânea (LAC/UFC) e também pesquisador do Grupo de Pesquisa Pragmática Cultural, Linguagem e Interdisciplinaridade (POSLA/UECE). Contatos: franromulosilva@gmail.com (e-mail)
@franromulosilva (Instagram).
UMA OUTRA DE SI MESMA
Anna Ortega, 2024
Para Revista Zum, Instituto Moreira Salles
Em sua casa na comunidade de Serviluz, Fortaleza, a fotógrafa Jane Batista (48 anos) posiciona o celular sobre o parapeito da janela. Ela escolhe os melhores horários de iluminação, às 11h, ou às 15h, quando a luz delineia seu corpo com sombras. Prepara, então, materiais cenográficos encontrados ao longo dos dias, na praia, no trabalho, em casa, ou na rua, como cascas de ovo, borra de café, leite, espinhos de flores e raízes de plantas. Tudo pronto. Jane fecha a porta e começa sua série fotográfica, iniciada em 2020: O quartinho de horrores.
Diante da câmera, Jane performa, embebida de uma profunda experimentação de si. As fotografias em preto e branco, tratadas em alto contraste, repetem-se apenas no enquadramento. Cada uma parece dar vazão a um eu distinto. Quando se fotografa, Jane imagina que está olhando diretamente nos olhos de alguém. Na série, devolve o olhar a quem a olha, contestando as imagens que são lançadas a si historicamente. E faz isso conscientemente, como um desejo de que a imagem penetre, de fato, em que sempre a encarou ou vigiou. “Eu tento imaginar que estou olhando bem dentro do olhar de uma pessoa. Eu quero que ela sinta que estou olhando para ela”, conta.
Quem deu o nome da série foi um dos filhos de Jane. Por diversas vezes, o mais velho chegava em casa e a artista estava no quarto tirando fotos. Quando via como a mãe estava vestida, não gostava. “Um dia minha irmã chegou em casa e perguntou onde eu estava. Ele disse: a mãe está no quarto dos horrores”, lembra. A sensação de susto, ao ver a artista transformada, é uma das intenções dela ao fotografar. Para além das dualidades em que uma fotografia de retrato pode ser compreendida, como bela ou não, as imagens da artista se situam no que está para além do binário: o horror que é também belo, e o sublime que desnorteia. “O quarto dos horrores é, para mim, uma lindeza. Eu acho bonito”, revela.
Jane trabalha com serviços gerais e aprendeu a fotografar de forma autônoma, por sempre nutrir um interesse em registrar o cotidiano. Há quatro anos, vem se dedicando à fotografia, onde utiliza exclusivamente o seu telefone móvel como ferramenta, tanto para captura como para edição. De forma orgânica, a vivência das mulheres, em especial as negras e periféricas, começou a lhe interessar. Em 2023 realizou sua primeira individual, intitulada Dizer o silêncio, na Imagem Brasil Galeria, em Fortaleza, com curadoria de Aldonso Palácio. Participou também da Bienal dos Sertões, Meu Inventário Verde e da publicação Fotoescritos do Confinamento.
“Tudo surgiu da minha curiosidade, do meu pensamento, e das coisas que observo que não se pode falar porque são cordas e máscaras na nossa vida”, explica. Quando a artista fala do próprio processo, fica evidente um deleite que sente na própria transformação, na montagem e na construção de uma cena em que suas fantasias e imaginações podem se desvelar. No início, realizava as fotografias para si mesma, não pensava em mostrar para o público. “Às vezes postava no Instagram, mas ficava com medo do que as pessoas poderiam pensar”, relata.
A elaboração poética de Jane evoca a pergunta que faz a si mesma ao apropriar-se de objetos do cotidiano: “no que isso pode se transformar?” Essa indagação funciona como um duplo, uma flecha de dois sentidos. Olha para fora, para as imagens que os outros têm de si; e para dentro, no profundo das próprias emoções, em um desejo de mudar a composição original das coisas. “É onde eu posso me libertar. Coloco nele as minhas imaginações naquilo que eu gostaria de ser”, explica.
E o que revela um autorretrato quando o rosto é oculto? A série transita nos limites da liberdade. O enquadramento se repete através de um corpo que nunca é visto por completo. Um rosto que também escapa à visão integral. Há um indecifrável que se mantém, e que sugere que nem tudo está visível, ou pode estar. E que o que não cabe no retrato, está também ali, compondo. Um exemplo é Sem Título (Gergelim 06), em que apenas metade do rosto da artista é iluminado. Os olhos se destacam na imagem e miram fora do quadro, em um olhar fixo e firme. O rosto, mesmo em seu lado obscuro, aparenta estar melecado. A fotografia de enquadramento semelhante ao 3×4, característico de uma identidade, parece ser o contrário: um rosto partido, dual, compreendido daquilo que pouco se vê.
Já em Sem Título (Sacos Plásticos 02) e Sem Título (Arroz 01) o rosto se aproxima no enquadramento do autorretrato e, em ambas, a artista olha diretamente para a câmera. São poucas as imagens da série em que esse movimento acontece, o que também faz com que esses autorretratos se destaquem do conjunto. Em Sacos Plásticos 02, o rosto é circundado por elementos que, se não fosse pelo título, seriam indecifráveis. Tornam-se abstratos diante das fotografias de Jane, suas texturas retorcidas saltam aos olhos, e como em outras imagens, anunciam uma experimentação visual sofisticada.
Ela conta que jamais deixaria ser fotografada da forma que ela mesma se fotografa. Há, em seu trabalho, portanto, uma autonomia completa para olhar para si, uma elaboração poética única, em que um extravasar visceral pode vir a ser. As fotografias fazem um diálogo fino entre o que é coletivo e o que é íntimo. Ela provoca também um sistema que a encara o tempo todo, a partir do julgamento e do controle. A câmera, historicamente um instrumento colonizador neste ser olhado, assume outro lugar em O quartinho dos horrores.
Ver o que não se vê
A artista constrói a imagem ao longo dos dias, a partir de um processo de feitura, em que vai e vem do trabalho, coletando objetos, na maioria das vezes orgânicos. Jane procura enxergar em seu cotidiano o que considera que as pessoas pouco notam ou valorizam – seja em um nível material, os ‘descartes’ que utiliza para compor, ou em um nível subjetivo. A construção de suas imagens se dá de duas formas:”um relâmpago”, um insight, em que sabe bem o que deseja mostrar, e em outras ocasiões confia na experimentação. No Quartinho dos horrores, estuda composições, ângulos, cenários, materiais e texturas, diariamente.
No seu livro Decolonizing the Camera: Photography in Racial Time (2019) (Decolonizando a câmera: fotografia em tempos racializados), o britânico Mark Sealy explica que a origem da fotografia reforçou a invenção de um Outro, objeto do olhar, sempre racializado – na qual impera um regime de imagem onde a câmera parece ter autorização irrestrita para captura das identidades e, na maioria das vezes, para o furto das imagens de quem é retratado. O pesquisador considera que “a história escrita pelas lentes da fotografia colonial é um instrumento violento e não confiável”. Jane, no interior da sua casa em Serviluz, faz parte de uma constelação de fotógrafos, fotógrafas e artistas da diáspora africana que praticam um outro fazer fotográfico, onde estabelecem com a câmera uma relação de autonomia e ação. São sujeitos de suas próprias imagens.
Nessa constelação, nomes como Samuel Fosso brilham. O fotógrafo camaronês, mestre do autorretrato, é uma referência também na fotoperformance. Em séries como African Spirits, encarna personalidades importantes da luta política e intelectual, como Angela Davis e Martin Luther King. No fotolivro SIXSIXSIX, o artista se fotografa 666 vezes, indo ao limite do que pode o próprio rosto e o próprio olhar. Parece se perguntar: “até quando, ou onde, eu sou posso ser eu?”. Trabalhos como o de Fosso e de Jane Batista fazem viver o direito à opacidade, reivindicado por Glissant, quando diz “do que disser respeito à minha identidade cuido eu”. O filósofo e intelectual, nascido da Martinica, defende o direito à representação complexa, não dual, nem redutível aos limitantes enquadramentos branco-ocidentais.
Nesta mesma trama de encontros podemos lembrar de Zanele Muholi, fotógrafe não-binárie sul-africane, que trabalha o autorretrato enquanto pessoa LGBTQIAP+. As imagens em alto contraste, os olhares marcantes e magnetizantes da artista, e seu modo de entender a câmera como um ativismo visual, são importantes aqui. Ou, então, Rotimi Fani-Kayode, fotógrafo nigeriano, que no auge dos anos 70, em meio a repressão e a Guerra Civil em seu país de origem, posicionou-se em frente às lentes, articulando o corpo com plasticidade e subversão, em uma série de autorretratos que parecem ter algo de semelhante aos de Jane: o gozo ao fabular.
O fabular crítico, conceituado por pensadoras como Sadiya Hartman, aborda a ideia de “recuperar o que permanece dormente”. O estúdio-ateliê da artista cearense é esse espaço livre, onde as memórias podem fluir, inclusive as de infância. Podem também existir nas imagens de Jane sussurros que nos ajudam a perceber uma outra história da fotografia, distanciando-se da história colonial, e também da história da arte branco-brasileira, como lembra o pesquisador e curador Igor Simões, em que pessoas negras e indígenas foram reduzidas ao lugar de objeto de olhar, como tema.
As fotografias guardam semelhanças com a cena dramática, imbuídas de teatralidade, e de uma efemeridade que nunca mais será a mesma. É significativo esse aspecto também: a artista pode ser uma Outra, não dos outros, mas de si mesma. Há uma catarse em imagens como Quimera 02, em que um ser de três olhos, com a língua para fora, olha o espectador. A fotógrafa também se aproxima de elementos religiosos, como a bíblia e o terço, em imagens que nem o rosto ou o olhar aparecem. Podemos pensar: “o que chega antes de seu rosto?”.
Em diversos autorretratos, um pano cobre seu corpo. O tecido que a embrulha dá várias voltas, sugerindo uma certa contenção. As texturas saltam aos olhos em todas as imagens, e parecem táteis: os espinhos, as cordas, os lençóis e os papéis. Já em imagens como Raízes, a artista deixa o olhar em evidência, fundindo-se a camadas de terra que parecem torná-la uma grande árvore, ramificada e enraizada. São vários os retratos em que Jane assume um corpo e um olhar que a fazem transcender.
Alimentando outros imaginários
Interessante observar que os materiais escolhidos por Jane para cobrirem seu rosto, como arroz, feijão e milho são feitos daquilo que podem lhe alimentar. São escolhas intencionadas que lembram também um ativismo visual, bem contado por Hartman e por Tavia Nyong’o, em que se questiona a necessidade de mais imagens de violência de populações negras. Fotografar com o que se alimenta lembra o próprio trabalho de Rosana Paulino, que ensina, desde os anos 80, que a fotografia – vista através do arquivo – tem o poder de machucar, mas também de recriar e colaborar com a cura das feridas do racismo e do colonialismo. “Você pode estar curada, sem nenhuma cicatriz, mas sempre que você volta no passado, seja dor ou alegria, ele vai espinhar você”, Jane comenta.
Em African Cosmologies: photography, time and the other (Cosmologias africanas: fotografia, tempo e o outro), Mark Sealy direciona nossos olhos ao poder da fotografia neste esforço de recontar. “Os fotógrafos da diáspora têm um impacto nas epistemes tradicionais – profundamente colonialistas. Estão amalgamados em um processo de refazer, desfazer, repensar o trabalho que as imagens fazem na história e na cultura”, diz o pesquisador.
Nesse caminhar para outros fazeres, Jane encontra no autorretrato, na cena e na performance, um lugar que é seu, um território próprio. Ela conta, inclusive, que muitas vezes chora ao performar, pois deixa as emoções escorrerem. É daí que surgem suas imagens. Não tem medo do que pode vir a ver – ou vir a ser. É como se o seu processo fosse também esse: ultrapassar os silêncios e os medos. Várias das fotografias parecem conter, no interior das imagens, elementos do onírico, do sonho, do escuro onde algo se revela. “Todo dia a gente mata um pedacinho da gente que quer nascer para o mundo, que quer viver da maneira que deseja”, diz a artista.
As fotografias de Jane sugerem que o pavor fique com quem a olha, e que o desconforto permaneça. Não saber o que sente diante de uma fotografia pode ser uma qualidade. Jane é inventiva e sua relação com a fotografia transcende o caráter de registro, documento ou verdade.
“São muitas Janes colocadas para fora. E eu sei que tem mais Janes escondidas dentro de mim”, revela. A artista se conecta com seus sonhos, desejos e medos através da fotografia. Quando aperta o botão do celular, e o temporizador marca dez segundos, seu quarto se transforma em um tempo-espaço de liberdade e intimidade, onde tudo é possível. Ser e não ser.
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Anna Ortega é repórter, interessada na escuta e escrita de processos artísticos. Trabalha com jornalismo cultural e cobre temas relacionados a direitos humanos e educação. Tem textos publicados em veículos como UOL, Revista Select, Nonada Jornalismo e outros. É também artista e fotógrafa.
UM OCEANO DENTRO DE MIM
Manoela Elias, 2025
"Território não é apenas o lugar onde estamos, mas a extensão de quem somos."
– Ailton Krenak
Jane Batista é fotógrafa performática, poeta autodidata e artista visual, natural do Piauí e radicada no Ceará. Desde 2020, utiliza exclusivamente o celular para criar suas narrativas visuais, experimentando com materiais cotidianos e orgânicos para produzir obras marcadas pela intensidade e profundidade. Sua trajetória desafia as normas tradicionais da fotografia e insere-se em um contexto de resistência e afirmação.
Jane vive no Titanzinho, comunidade conhecida por sua relação íntima com o mar e pela vibrante cultura local. Um Oceano Dentro de Mim propõe uma travessia pelos afetos, lugares e identidades que permeiam a relação da artista com seu território. A exposição traz autorretratos, cenas do cotidiano e paisagens que destacam a relevância das experiências partilhadas em meio às mudanças sociais e urbanas.
O olhar atento de Jane Batista reconhece, nos detalhes, a força que emana de sua comunidade. Como descreve Ailton Krenak, há um enraizamento que nos conecta ao território como parte de quem somos, uma reverberação que atravessa corpos e histórias. Sua perspectiva, consolidada pelas vivências no Titanzinho, não apenas documenta, mas também elabora fabulações sobre o que significa, de fato, viver neste lugar. Em um cenário marcado pela especulação imobiliária, sua obra é um ato de preservação da memória coletiva e da identidade comunitária. Os afetos celebrados nas imagens – das relações familiares aos laços que unem vizinhos – são centrais para a construção de uma resistência perene.
Tal como em um poema de Conceição Evaristo, os escritos de Jane também são escrevivências – histórias impregnadas pela importância do relato. Ao dizer de si e de seu entorno, ela nos oferece um vislumbre de uma intimidade cotidiana que transcende geografias: “São tantos os segredos e mistérios nas profundezas dos mares, mas aqui, bem aqui, bem aqui... você consegue ouvir?” Aqui, o mar não é apenas cenário: é memória, sustento, refúgio e espelho – a conexão com parte importante de sua inventividade e com o espaço que vibra ao seu redor.
Repleta de sutilezas e tensionamentos, a exposição explora os múltiplos aspectos que conectam o ser humano à natureza – a alegria, a beleza, a morte e, sobretudo, as transitoriedades. Ao criar imagens que flertam com o cotidiano e a performatividade, Jane Batista reconfigura o papel da fotografia enquanto meio de expressão. Suas obras sugerem novas possibilidades de discurso visual, alinhando-se a uma tradição de artistas que utilizam a câmera para questionar as representações hegemônicas e propor novas formas de ver e entender o mundo.
Ao nos depararmos com suas criações em Um Oceano Dentro de Mim, somos levados a compreender não apenas o que é retratado, mas também o que está em jogo – a continuação das tradições, a importância dos vínculos e a luta, mais do que necessária, pela permanência.
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Manoela Elias nasceu em 1991 em Fortaleza, CE. É diretora de teatro, professora e pesquisadora em artes. Formada em Belas Artes pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR) e mestre em Mídias, Comunicações e Práticas Críticas pela Universidade de Artes de Londres (UAL). Atualmente se dedica à pesquisa nos campos da história e mitologias do feminino, bem como na ciência das religiões.